tirei os fones

Tentei o ioga e não funciona
tentei o mindfulness e não funciona
tentei cursos online e retiros e não funciona
tentei ler livros de autoajuda seguir influencers
mas o que mais me arrelia e desespera e que não funciona
é ouvir o meu coração

Um dia alguém me disse para o ouvir o meu coração
e quando eu cheguei a casa e fui para o meu quarto
e fechei a porta à chave e tirei os fones
ouvi o meu coração a bater mas não falou
até prendi a respiração mas só desacelerou
parecia que estava à espera que eu me pusesse à escuta
mas não disse nada

Aí eu pensei
deve ser isto
ele se calhar não diz nada
é só questão de saber ficar só comigo
e ouvir o meu coração sem dizer mais nada

quanto baste

um raio de luz é um relâmpago
um estrondo é um trovão
só à luz da meteorologia zeus se lê tempestade
mas isso não faz com que a mitologia
não seja verdade
por exemplo
o carnaval é comprar disfarces e deitá-los fora
é sujar as ruas para os empregados da câmara depois limparem
e o natal é a estação das compras
uma estação artificial entre meio outono e primeiro inverno
que culmina com uma depressão e muitas despesas extra
mas não
eu quero que o carnaval seja a festa das amendoeiras em flor
bacanal dos primeiros cereais da promessa de pão que chegue
para nós e para os outros que vêm de bote à socapa
de países onde não há natal nem trabalho
só fome e religião para enganar a desdita
e quero que o natal seja uma linha descendente no consumo
um tempo sem religião para celebrarmos o que nos une
e fazer do decrescimento económico uma salvação mais real
esse natal é que deve ser todos os dias
sem jesus nem luzes que gastam imensa electricidade
e que não são estrelas nem tempestade
um natal sem prendas nem endividamento ou cartões de crédito
só boa companhia e vida quanto baste

Mensagem do bode expiatório

o poema é uma canção
que compor requer paz
como pode um bardo cantar na presença de censores?
como pode um bardo cantar na presença de sensores?

inútil reprimir a poesia sobretudo em tempos de chumbo
a morte faz surgir a vida como borbotos numa carmona de lã

entrei por porta estreita nada promissora
subir montanhas digitais é mester escravo
por isso embora a custo sem mérito singrei
nenhuma tarefa é digna por ser árdua

o monstro chinês enche os olhos ocidentais de lágrimas desnecessárias
usa vassalos para confundir os sentidos e despistar o desejo
a cidade antiga é hoje um centro comercial
esta loja conta com câmaras de vigilância

ao sair da sua zona de confort tenha cuidado com a distância
entre as portas e a plataforma





eu era o meu peso

eu era o meu peso

como um código de programação
o tempo corrompia-se
a minha coluna acumulava
a dor das flexões continuadas
das posturas incómodas e submissas
a submissão é a dor do capitalismo
uma submissão sem convicção nem entrega

eu era o meu peso
mas a sereia do eterno assomou à beira do meu mar
e o meu oceano acordou
cintilaram as águas mudas e os bivalves falaram
em línguas estranhas exprimiram as profundezas do mar
o meu oceano acordou
a minha dor é consciente e já não me pode dominar

eu era o meu peso
mas hoje sou o brilho do sol que afaga a areia
e cada grão de areia diz o nome da rocha que foi
cada rocha de que foi parte microscópica
jamais irrelevante
liberto a sereia vertebral
as minhas costas estendem-se como as cordas da cítara

eu era o meu peso
como uma cítara tocada por mãos misteriosas
a mão invisível do eterno massaja os meus músculos
e infunde o sal da vida e acorda o mar interno
eu sou a praia e a lembrança do eterno
eu sou a cítara e o silêncio ao abrigo do vento
eu sou a desdor

revelação da minha leveza


Contador de mulheres

nas gavetas do contador não havia merengue os doces proibidos
eram fechados à chave em recessos mais recônditos que uma selva qualquer
tu falavas pouco de áfrica reduzia-la a um continente a um nome
como todas as mulheres que amaste querendo ou não ser possuídas
sangradas ou por sangrar a todas lhes chamaste só tenho olhos para ti
cem mulheres quanto valem? uma só mentira
e duzentas e trezentas? uma só mentira num papel amarelento
enrolada como o pau de canela que enfias na chávena de chá preto
enquanto preparam o último jantar para brancos repleto de iguarias
e do ódio natural que se mistura com a submissão de anos a fio coalhada
pensas enquanto fumas nos incontáveis pertences no merengue na flor das meninas
pensas se preferes o domínio colonial ou essas árvores de fruto
que esta noite serão abatidas

Fado de sombras

às vezes levo as duas mãos ao peito
uma sobre a outra em forma de ave
a minha mãe está longe e eu desfeito
meu coração sem querer fechado à chave

amei quem não podia e não retive
ressentimento ou desamor – só queria
ser como uma esperança que só vive
quando a morte seu terço já desfia

nem odor de perfume nem de brisa
só a lembrança vaga de uma pele
que me acompanha morna e imprecisa

devo esquecer o mal que já foi feito
é só a amar que a tua voz me impele
a amar com o que trago no meu peito

Nem todo o sal do mundo

não te sei evocar, apareces
como o sabor a sal, familiar
talvez em demasia, em quase todos os pratos
da nossa gastronomia;
como não vieste à hora marcada,
a tua pontualidade habitual
fez-me pensar que já não vinhas
e pus-me a arranjar as unhas, a destecer o cabelo
entre os dedos porque não trouxe o pente,
só uma escova para os dentes, os comprimidos
e uma muda de roupa interior;
e não vieste, se considerarmos que vir
é deslocar-se para estar junto de quem espera
e eu esperei por ti
e tu só mandaste uma mensagem parva
como se um texto calasse a fome

Rondó

sou filho de david sou português errante

na vida eu vi muita mulher estragada
retinta de sol e fel de ser gasta
mas nenhuma vi com os olhos de vitral
da minha mãe minha amada

na vida corri muita ladeira acima
montanha aldeã rumo a paços findos
os reis já depostos os sonhos idos
e o sabor amargo de um sorvete lima
(eram os mais baratos)

do meu pai se não falo é que não falo ainda
mas da minha mãe que deus quer ainda viva
canto para dentro e a alma estiva
de dor de desejo de esperança finda

descobriu-me a sorte de quem era família
e da árvore de jessé de onde vinha
já ninguém se lembra mas cá dentro a vinha
prepara o cálice da eterna vigília

e eu que fui para fora sem saber ao certo
quando voltaria tornei-me de sal
ao olhar para trás e ver Portugal
tão azul de mar e tão breu de perto
(com isso é bastante)

sou filho de david sou português errante