Overlock

com os anos vou sabendo quem imito
no meu gesto obstinado de percutir a máquina
até comprei uma mesa de uma antiga singer que deus tenha
lá no céu cerzido das costureiras
sai à mãe dizem uns
sai ao pai dizem outros
sai aos dois e à mão fusca do desígnio

ajustado à cadeira e à mesa
numa linha de montagem descosida
passo a agulha com afinco repetido
para cumprir os prazos e receber a paga
traduzir é crochet

mas no tempo em que a mãe traduzia
o fio de algodão em naperom
ou a lã em camisola se o texto era tricot
não havia paga nem mérito ou diploma
só o trabalho do pai é que contava para o salário

eu não esqueço estas agulhas
quando leio ou oiço falar de desigualdade
sei que há máquinas de distinguir e classificar
sempre bem oleadas apesar dos anos
que as pessoas pobres ou pretas ou com cona não têm
os mesmos direitos que as outras
e por isso escrevo ainda poesia como cartas de desamor
e de amor também
não porque alguém precise mas para deixar constância

escrever é navegar incerto pelas ruas do interior

é quando traduzo que mais acerto e estugo o passo
e tecla a tecla toque a toque labuto o texto
anima-me uma fúria sereníssima de não ver fim ao labor
e ter só no horizonte a intuição do perímetro
esperar sem saber quem
chegar sem saber onde

Chocolate azul

diz lá tudo o que farias por uma tablete de chocolate azul

o meu sonho é brincar às estrelas
e voar para além do céu da boca
e jogar como se fossem letras
noutro tempo é que a vida era boa
toda a gente sabe por experiência
que a serpente é a melhor companhia
fala pouco e tem paciência
se lhe dermos ratinhos da índia

há gente que não entende a língua da alegoria
é triste mas dá jeito quando a coisa não está fina
e o presente é de sonho e o futuro é terrível
e o passado mau mau é uma lenda invencível

de repente olhei para a minha vida
tentei evitar que continuasse
mas depois li neorrealistas
e voei com a Fiama Hasse
do Raul Brandão d’Os pescadores
a Avieiros do Pereira Gomes

há gente que não entende a língua da poesia
é triste mas dá jeito quando a gente nem pia

O Amolador da Praia

Havia uma praia e na praia havia havia
um homem de poucas falas dono duma alma bravia
que trazia uma roda ai uma roda trazia
de afiar facas e silêncios dos que não se fiam

Quase não falava mas ai da boca sadia
uma gaita às vezes temperada à maresia
soava em desafio ai que som dela saía
uma estranha e talvez eterna melodia

Pedra de roda roda essa roda bem sabia
o que andava à roda e não era a lotaria
era a sorte que faltava a quem da luz não dormia
no Tarrafal no Aljube ou no forte de Caxias

E no horizonte havia
mais do que uma ilha
e no horizonte havia
aquela estranha melodia

Quase não falava como outros que gemiam
Mas dava voz à gaita como a noite a dá ao dia
E ao ritmo da roda que a faca dos bons afia
Enchia o ar todo de esperança e utopia

Meio céu

se um herói é alguém
que rompe o grilhão de ser homem
e ascende a um lugar divino que sempre foi seu
um demónio deve ser apenas
um anjo a cair do céu
ao cortar-se as asas que nunca creu ter

por isso quando à tarde de um dia qualquer
saí à rua à espera de ser nuvem e talvez chover
vi um motim a meio céu contido
à espera de se desconter
eram velhos heróis que não podiam ir mais além
e demónios cansados de tanto descer

pareceu-me ver
uma chuva invertida
onde ninguém podia avançar nem retroceder
como se os deuses que houvessem estivessem a dizer
para o céu e a terra ficarem onde estão
e eu voltar à minha solidão

Obsessão

entras no mesmo quarto à mesma hora
na mesma situação
despedes-te do mundo vais-te embora
para dentro da tua razão
só tu é que sabes o que é que há dentro do teu coração
eu tenho chaves mas nenhuma abre o que não quer
porque há uma vontade em cada porta do teu ser

entregas-te aos mesmos prazeres
todas as vezes que quiseres
desfilas pelos corredores
já conheces os teus sinais
e fazes com que coincidam com histórias a mais
não tens tempo para lutar mas tens horas para te despenhar
uma e outra vez de cimos artificiais

cai no real
depende só de ti
eu sei de ti eu sei quem és
vem a mim
rompe a onda amarga dessa solidão
dá corpo à luz que te chama
como se não houvesse escuridão
ou como se houvesse
como se eu fosse a tua obsessão

Receita fácil de arroz doce

põe água a ferver
leva a água à panela e a panela ao lume
duas medidas de água por uma de arroz
deita sal e que ferva
agora deita o arroz
agora pega noutro tacho
deita-lhe uma medida e meia de leite
e leva-o ao lume
quando houver pouco líquido na panela do arroz
deita o leite já quente
e quando o arroz estiver feito
que é como quem diz cozido
deita uma gema batida com um pouco de arroz
tira a panela do lume
mede um terço da medida do arroz que deitaste
deita essa medida de açúcar
mistura mistura sem desfazer o arroz
mistura mistura como se fizesses o amor
deita em pratos
molha a boca de um cálice e põe-na num prato com canela
depois põe-na num prato de arroz
repete tantas vezes quantas te ordenar
o sentido da estética
o paladar
ou a geometria intuitiva

Ucrânia

o sol brilha enquanto oiço a rádio
e o meu cardigan castanho
que ficou pendurado na cadeira de teletrabalhar
brilha com ele
sinto-me profundamente afectado
pela possibilidade de mais uma guerra
e pela indiferença feliz da gente ao sol
ou será mesmo desumanidade
porque a morte dos primeiros soldados
os ensaios com armas nucleares
a chacina iminente
não lhes preocupa tanto como
o preço da gasolina
quando isso acontecer
as notícias não poderão dizê-lo
porque o sofrimento não cabe em palavras
então olho novamente para o meu cardigan
e penso
se por uma lei simpática ele brilha porque brilha o sol
vou agir na minha insignificância
fazer qualquer coisa que aumente
a poesia do mundo
o preço da gasolina não vai descer
e sobretudo
não vou impedir uma única morte
mas quem sabe se o sol não chega às almas do ódio
para desfazer as vontades do poder
se eu próprio brilhar
no meu escuro

Bando

os patos de plástico não grasnam
são quase todos amarelos e poluentes
com o biquinho fechado para que ninguém os ouça
nem sempre andam em banheiras inocentes
multiplicam-se como coelhos ou talvez mais
alastram pelo mundo a sua presença amarela
de plástico reles moldado por outros patos
ainda mais amarelos e infelizes
escravos quá quá de duas patas
nossos semelhantes

Minha avó da boa morte

minha avó da boa morte
jaz viva mas arde em febre
ela já só pede sorte
para ir para o céu perene

quatro lençóis de cetim
e dois com manchas de merda
a minha avó pede fim
a uma vida que é só perda

avanço para limpá-la
com duas toalhas de linho
mas ela que quase não fala
diz que espere um bocadinho

avó não fiques calada
o mundo precisa hoje
de ouvir a voz sem albarda
que é a vida que nos foge

pois todos somos defuntos
que o caos sepulta e invade
e oculta noutros mundos
sem esperança nem liberdade

Muitas mães mortas

chegamos frustradas a um país sem vivalma
o choro às costas num fardo de penas a que chamamos filho filha
olha para a esquerda e para a direita para trás e para diante
não vem ninguém
passa agora
quem é que havia de passar por nós num país sem gente
se não fosse porque somos almas sempre clandestinas
fugidias
luzidias da luz do bronze quando faz aquele verdete musgo
porque o tempo também passa pelo metal
e senão perguntem-no às armas
às armas
sobre a terra sobre o mar
e sobre esta vida fechada de par em par